sexta-feira, 10 de outubro de 2014

Porquê estar à beira do abismo e insistir em dar um passo em frente? - Publicado no Jornal do Pico a 10 de outubro de 2014


Porquê estar à beira do abismo e insistir em dar um passo em frente?

No passado dia 26, a Atlânticoline anulou o concurso internacional para a construção de dois navios para transporte de passageiros. Na sequência, em declarações públicas, o Presidente do Conselho de Administração afirmou; “assegurar a operação atual com barcos próprios (e não alugados, como acontece hoje), traduzir-se-á numa poupança anual de 2,5 milhões de euros. Além disso, revelou que os novos barcos terão capacidade para operar também no inverno, mas a possibilidade de isso acontecer só será avaliada posteriormente”.

Como é sabido, para habilitar o acionista a tomar uma decisão sobre o transporte de viaturas e passageiros na Região Autónoma dos Açores, o Conselho de Administração da Atlânticoline pediu a opinião a vários dos seus departamentos.

Numa leitura muito superficial, devo dizer que a administração da Atlânticoline está com evidências negativas do mercado, mas continua a acalentar falsas expectativas com projeções irreais.

 

Vou-me centrar nos custos, pois esse será o legado para o futuro.

 

Pergunto:

Onde está o valor das deslocações para as docagens? A deslocação deve evidenciar o custo da docagem, certificação, tripulação e combustível (2 navios). Onde está o valor do P&I? – P&I Club is a mutual insurance association that provides cover for its members.

 

Análise efetuada pelos diferentes departamentos da empresa

 

É tal a ligeireza e são tantas as lacunas com que este assunto é abordado que tenho grandes dificuldades em poder considerar ter havido uma análise competente, séria e sistematizada com base na qual se possam tomar decisões e planear o futuro, em termos de modelo de transporte.

 

Mesmo tendo consciência de que não adianta malhar em ferro frio ainda assim vejamos:

 

DEPARTAMENTO COMERCIAL E MARKETING

Após a análise do mercado de viaturas e passageiros, em decréscimo desde pelo menos 2010, a subscritora sugere que a empresa compre dois navios com a capacidade de 600 passageiros, 100 a 150 viaturas e 15 a 20 contentores e carga rodada. Tudo isto por cada navio. Que visão é esta sobre a carga?

Aponta ainda no sentido de os navios navegarem todo o ano embora, com regularidade reduzida.

Insiste num modelo de quantificação do movimento efetuado que, para o transporte marítimo, é único no mundo do shipping e leva a conclusões erradas.

Parece ter um objetivo pouco ambicioso ao não apresentar um mercado alternativo na época baixa para, pelo menos, um dos navios.

DEPARTAMENTO OPERACIONAL

“Analisa” as várias vertentes da exploração e conclui pela aquisição de dois navios em aço com um máximo de 115 metros de comprimento e Rampas Ro-Ro.

Trata-se de uma análise demasiado simplista que deixou de fora um conjunto de variáveis fundamentais e sem as quais não é possível tirar conclusões fiáveis pelo que, não me merece credibilidade, nem pode merecer a ninguém.

A operacionalidade de um navio RO-RO durante todo o ano nos nossos portos teria que ser, obrigatoriamente, profundamente analisada. Portos em mar aberto, como são os nossos, não são propriamente portos fluviais.

DEPARTAMENTO FINANCEIRO

O estudo apresenta vários cenários, mas conclui que apenas um é viável – Investimento de 85.000.000,00€ com recurso a fundos comunitários (85%) e orçamento da RAA (15%).

Equivale isto a dizer que haverá uma amortização financeira de 12.750.000,00€ e uma contabilista de 85.000,000,00€

Ainda de acordo com o estudo, a amortização financeira será de dois anos e a contabilista de 20 anos. Significa isto que há um custo de amortização contabilista anual de 4.250.000,00€. Como é possível que este custo não seja considerado? É certo que as contas anuais não serão afetadas por todo este montante porque o mesmo gera um acréscimo de proveitos de 3.612.500,00€, mas serão afetadas pelo montante de 637.500,00€.

Além disso, o estudo financeiro aponta para que os navios estejam parados 6 a 7 meses, contrariando a sugestão do departamento de marketing e as indicações do próprio Governo Regional que sugerem uma exploração anual. Este departamento não contempla os custos com a exploração anual dos navios, assim como as respetivas docagens; ida/regresso e combustível dessa viagem.

Quadro 0 - custos calculados pela Atlânticoline

Há a considerar ainda nos custos de exploração os valores abaixo indicados, Quadro 1, e que não estão enquadrados no estudo:

Quadro 1 - custos não previstos pela Atlânticoline

Serviço
Por Navio
Total 2 Navios
Observações
Manutenção
125.000,00€
250.000,00€
Anual
Seguro do casco
200.000,00€
400.000,00€
Anual
P & I
350.000,00€
700.000,00€
Anual
Docagem Combustível
50.000,00€
100.000,00€
Anual
Docagem
150.000,00€
300.000,00€
Anual
Tripulação
1.200.000,00€
2.400.000,00€
Anual
Staff
300.000,00€
600.000,00€
Anual

 

Total anual de custos, não quantificado pela Atlânticoline, para os dois navios = 4.750.000,00€.

Do exposto, conclui-se que o quadro da Atlânticoline, repescado do departamento financeiro da mesma, não contém todos os custos pelo que deve ser corrigido com os dados do Quadro 1.

Faço notar que, excluindo os dados do Quadro 1 que foram por mim calculados e que não estavam devidamente comtemplados no estudo, todos os outros dados resultam da consulta aos dados fornecidos pelo estudo da Atlânticoline.

Segue-se Quadro 2, corrigido o quadro 0, com os dados do Quadro 1, considerando todos os custos fixos envolvidos.

Quadro 2 – Custos reais

 
FORECAST
Rúbricas
2014
2015
2016
2017
2018
2019
Total
 
Financ. RAA
Financ. RAA
Financ. RAA
Financ. RAA
Financ. RAA
Financ. RAA
 
Fretamento
 
 
 
 
 
 
 
Subsídios à exploração
7.563,023 €
7.563,023 €
7.563,023 €
7.563,023 €
7.563,023 €
7.563,023 €
45.378,138 €
Navios próprios
 
 
 
 
 
 
 
Subsídio à exploração
6.800,000 €
6.300,000 €
9.050,000 €
9.050,000 €
9.050,000 €
9.050,000 €
49.300,000 €
Subsídio ao investimento
4.143,750 €
8.606,650 €
0,000 €
0,000 €
0,000 €
0,000 €
12.750,000 €
Total
10.943,750 €
14.906,650 €
9.050,000 €
9.050,000 €
9.050,000 €
9.050,000 €
62.050,000 €
Variação do subsídio à exploração (fretamentos vs navios próprio)
+44,70%
+97,09%
+19,66%
+19,66%
+19,66%
+19,66%
 

 

Nos dois anos de investimento/construção, o valor total a atribuir como subsídio de exploração cresce exponencialmente por incluir o montante de apoio do orçamento da RAA ao investimento.

Nos anos seguintes, os valores do subsídio à exploração estão espelhados no quadro 2 e, contrariamente ao afirmado pelo suposto estudo da Atlânticoline, não diminui como, aliás, não poderia diminuir.

A par destes custos fixos, há que perspetivar o seguinte:

·        Receitas dos navios com passageiros e carga durante todo o ano;

·        Investimento em contentores;

·        Custo de exploração anual do navio nos restantes meses não contemplados na análise.

A título de exemplo lembro que a entrada/saída num porto de um navio com as caraterísticas dos apontados no estudo da Atlânticoline, dependendo das horas de operação, varia entre 8.000,00€ e 12.500,00€ - considerando apenas os serviços de amarração, pilotagem, alfândega, capitania e TUP navio.

 

CONCLUSÃO

Não poderá haver um investimento, particularmente desta ordem de grandeza e com as implicações que irá originar, quando os estudos dos vários departamentos da empresa não coincidem em objetivos e custos, pelo que convinha ter uma análise em duas vertentes – exploração a 6 e a 12 meses.

Além disso, convém combinar os prós e os contras, na vertente financeira e de risco, na opção de operar os navios nos seguintes termos:

·        Seis meses e/ou um ano em condições de equipamento próprio ou de fretamento.

A imputação de todos os custos fixos acima referidos, aliados aos variáveis e amortizações, contrapondo as receitas e subsídios à exploração, irá dar um resultado de exploração muito diferente do que é indicado e pesando muitos milhões no orçamento da RAA.

Julgo que, sem qualquer exagero, se deve perguntar:

·       Que administração é esta que tem uma visão focada só sobre as festas de Agosto?

·       Que estudo de mercado é este?

·       Quem suportará os custos, financeiros e humanos, resultantes da destruição dos atuais armadores do Tráfego Local?

·       Quem suportará os custos do abastecimento/escoamento de produtos com o exterior da Região a, no mínimo, 5 Ilhas quando caírem as atuais Obrigações de Serviço Público?

·       Em suma; Quem pagará no futuro?

 

Admitindo que o quadro por mim apresentado possa não estar absolutamente correto, dado o facto de os dados recolhidos no estudo da Atlânticoline serem muito imprecisos e pouco fiáveis, lembro que nenhum estudo, excluindo dados fundamentais e elementares, pode justificar o injustificável. Não tenhamos ilusões; Existe uma diferença abissal entre “não dar lucro” e ser um buraco monumental.