quinta-feira, 14 de agosto de 2014

A SAGA DO N/M “ ATLÂNTIDA” - Publicado no Jornal do Pico a 14 de Agosto de 2014


A SAGA DO N/M “ ATLÂNTIDA”

Depois de duas Comissões de Inquérito – uma na Assembleia Regional e outra na Assembleia da República – os representantes do povo, por ignorância ou miopia político-partidária, não foram capazes de concluir o óbvio esquecendo ser esse o seu dever.

Em 2006, lançou a Empresa Pública regional ATLÂNTICOLINE dois concursos públicos, sendo um:

Concurso Público Internacional n.º 1/2006 – construção de navio com capacidade mínima para 790 pessoas e 140 viaturas – preço base 39.950.000,00 €, cláusula 22ª. do Contrato;

 

Eram peças dos concursos os Cadernos de Encargos dos quais faziam parte os Arranjos Gerais e as Memórias Descritivas.

 

De realçar que os Arranjos Gerais e as Memórias Descritivas eram, nos termos do contrato, elementos meramente indicativos – ponto 1 da cláusula 4ª. do contrato – cabendo a quem ganhasse os concursos o desenvolvimento dos respetivos projetos.

 

Relativamente a estes dois concursos, estava convicto que os mesmos ficariam vazios – não foi por acaso que os ENVC ficaram sozinhos – porque, tendo por base os elementos disponíveis, era minha convicção, infelizmente confirmou-se, que muito dificilmente se conseguiria construir os navios definidos nos contratos.

 

O contrato foi celebrado a 21 de setembro de 2006.

 

Logo que de tal tive conhecimento, remeti em 4 de outubro de 2006 ao então Secretário Regional da Economia, documento escrito, no qual, entre outras coisas, chamava a atenção para:

 

1-   Concurso Público Internacional n.º 1/2006 – construção de navio com capacidade mínima para 790 pessoas e 140 viaturas.

 

A definição das características principais do navio e da especificação das variáveis de operação contêm, por um lado, inúmeras lacunas e, por outro lado, exagerada definição de equipamentos os quais só poderão e deverão ser definidos após o desenvolvimento do Projeto;

Existem situações de conflitualidade entre o Caderno de Encargos e o Programa do Concurso, nomeadamente no que diz respeito à definição de camarotes, autonomia do navio, requisitos de manobrabilidade, etc.;

Impossibilidade de o navio ultrapassar os 17 nós;

Etc.

 

 

Fase de construção.

 

A fase de construção foi tudo menos normal e iniciou-se ilegalmente já que no ponto 2 da cláusula 4ª. do contrato lê-se: “ A SEGUNDA OUTORGANTE obriga-se a submeter o projeto de construção do navio à aprovação das competentes entidades nacionais, à Sociedade de Classificação e à PRIMEIRA OUTORGANTE, não podendo a construção ser iniciada sem que seja aprovado o projeto de construção elaborado a partir dos ensaios em tanque.” Este foi o primeiro momento em que o contrato deveria, ainda sem prejuízos para qualquer das partes envolvidas, ter sido denunciado. Apenas em 2007, deram entrada no IPTM os primeiros elementos relativos ao navio, os quais tiveram da parte deste parecer desfavorável.

 

Contratualmente e de acordo com a Memória Descritiva visada pelo Tribunal de Contas, o navio “ATLÂNTIDA” destinava-se ao tráfego internacional/Internacional Voyage utilizando como combustível HFO/óleo combustível pesado.

 

Foi elaborada e assinada uma segunda Memória Descritiva na qual se constata que:

O navio passou a Short Internacional Voyage. Tal implica que o navio só poderá navegar entre portos que não distem mais de 200 milhas náuticas, podendo ter menos embarcações salva-vidas;

O combustível passou a marin diesel;

Para obtenção da velocidade de 19 nós, reduziu-se a margem de mar de 15% para 5% com implicações diretas no desgaste dos equipamentos propulsores e no aumento do consumo.

 

Esta nova Memória Descritiva, para além de provocar um aumento significativo dos custos de exploração, não tem validade legal, sendo que a receção do navio só poderá ser efetuada com a Memória Descritiva visada pelo Tribunal de Contas.

 

Em 29 de dezembro de 2006, 8 de janeiro de 2007 e 19 de fevereiro de 2008, foram assinados os primeiros aditamentos ao contrato. Por falta de espaço, não analisarei estes aditamentos. Contudo, os mesmos têm muito que se lhe diga.

 

Em 21 de dezembro de 2007, o IPTM alerta para o facto de, para além de faltarem lugares para os passageiros se sentarem, também haver graves problemas na compartimentação dado terem considerado o fator de compartimentação 1 ­– existência de embarcações salva-vidas a cada bordo para 50% dos passageiros embarcados. Como tais embarcações não existiam e não se podiam instalar, teriam de passar o fator de compartimentação a 0,5 (regra 6.5.1 capitulo II-1 da SOLAS), isto porque o “ATLÂNTIDA” só tinha a cada bordo embarcações salva-vidas para 35% dos passageiros embarcados. Na prática, só tinham considerado um compartimento alagado quando deviam ter considerado dois.

 

Em 29 de agosto de 2008, foi assinado o quarto aditamento ao contrato. Este aditamento incluía algumas questões mais ou menos irrelevantes, sendo porém duas muito relevantes:

Alteração da compartimentação cuja responsabilidade é do estaleiro pois deriva dos problemas do projeto;

Alteração do prazo de entrega para 30 de setembro de 2008.

 

Nesta fase muito complicada da construção, eram tantos os problemas que este aditamento só pode ter tido como objetivo preparar, a todo o custo, a receção do navio sem ter em consideração as questões técnicas.

 

 

Os problemas nesta fase são verdadeiramente dramáticos. Reiniciam-se os trabalhos de recompartimentação e de equalização, sem aprovação prévia por parte de Sociedade Classificadora e do IPTM.

 

No seguimento do atrás referido, foi pedido parecer à Det Norske Veritas-DND com o seguinte objetivo; Avaliação do sistema de equalização e das condições de equilíbrio final em situação de avaria.

 

No parecer da DNV pode ler-se:

 

Os cálculos foram inexplicavelmente mal feitos. Mais uma vez está em causa a incompetência do Gabinete de projeto dos ENVC;

Nestes cálculos devem ser utilizadas as curvas de mínima GM ou seja da GM intacta corrigida com o efeito do embarque de água (perda de impulsão, aumento de imersão, variação do centro de gravidade, correção do efeito de espelho líquido, etc.);

Como por erro, grosseiro e inexplicável, do Gabinete do Projeto dos ENVC se utilizaram para efeito de cálculo as curvas de GM intacta (situação normal e sem avaria) empolaram artificialmente a GM mínima, para a condição de full draft (máxima imersão) em valores que variavam entre 1,6 metros e 2,0 metros. Tal teve como resultado que para baixar o centro de gravidade e recuperar a estabilidade, intacta e em avaria, houve que embarcar lastro aumentado a imersão, o deslocamento e o respetivo calado – colocando limitações de operação em alguns portos – e reduzindo, drasticamente, a velocidade.

 

Como o desenvolvimento do projeto era da responsabilidade dos ENVC e esta é uma falha muito grave, tornou-se na principal razão para aqueles assumirem toda a responsabilidade.

 

 

Como resultado, o navio tem graves problemas para satisfazer os requisitos da SOLAS relativos à estabilidade em avaria (SOLAS Cap. II-1 Parte B regra 8).

 

A título de exemplo, para embarcar lastro fixo até resolver o problema de estabilidade, reduzir-se-ia o número de carros transportados de 140 para 30.

 

Em 31 de agosto de 2008, foi levada a cabo uma prova interna de estabilidade da qual se concluiu que:

 

O deslocamento leve era superior ao projetado em cerca de mais 370 toneladas;

O centro de gravidade estava, relativamente ao projetado, subido cerca de 600 mm;

O navio não cumpria com os critérios de estabilidade intacta e muito menos em avaria.

Menos porte;

Menos velocidade;

Mais consumo de combustível;

Mais custos de exploração.

 

Todos estes problemas são consequência da forma inadequada como foi desenvolvido pelos ENVC o projeto e o processo construtivo e são da exclusiva responsabilidade daqueles.

 

Na minha modesta opinião, a partir daqui, o navio começa a atingir contornos de sucata, como o comprova o valor pelo qual foi vendido. Estamos pois perante nova oportunidade de denunciar o contrato.

 

Como consequência de tudo isto, em 15 de dezembro de 2008, remeti ao novo Secretário Regional da Economia um documento escrito em que resumidamente chamava a atenção, entre outras coisas, para:

 

Relativamente a esta construção, foi pelo Presidente do Conselho de Administração do referido estaleiro proferida a seguinte afirmação: " Essa história do navio dos Açores é uma história muito triste, o projetista fez um mau trabalho e uma série de disparates, os estaleiros estão a estudar uma solução para apresentar ao Governo Regional, para verificar se, com as alterações, vão conseguir gerir o navio ".

Juntando esta afirmação a outras informações públicas, porque veiculadas em diversos órgãos de comunicação social, confirmadas e/ou não desmentidas pela ATLÂNTICOLINE, podemos facilmente constatar o seguinte:

Seja o que for que esteja a acontecer com esta construção, é muito grave;

Para a Região, a preocupação centra-se na última parte da afirmação proferida pelo Presidente do Conselho de Administração do Estaleiro ou seja, "…, para verificar se com as alterações vão conseguir gerir o navio ";

Desta parte da afirmação resulta, claramente, que as preocupações da Região se devem centrar nos critérios operacionais, já que são esses que colocam, ou podem colocar, limitações e /ou entraves à gestão comercial e /ou operacional do navio;

Das anomalias detetadas e deficientemente corrigidas – no início de dezembro ainda não tinham sido aprovadas pelo IPTM – resulta claramente uma profunda diminuição da fiabilidade do navio e um aumento brutal dos custos de exploração;

 

Resumindo; É possível concluir, sem qualquer margem para dúvidas, que o navio "ATLÂNTIDA":

Não é fiável;

Não cumpre com os critérios operacionais;

Terá limitações devidas a excesso de calado;

Verá agravados os custos de exploração, fixos e variáveis;

Qualquer tentativa apressada para o receber agravará todos estes problemas.

 

Nesta fase, porque eram os ENVC o único responsável pelos "estragos" - pese embora alguma conivência da ATLÂNTICOLINE - vejam-se os aditamentos, na minha modesta opinião, deveria a Região colocar a máxima pressão possível sobre aqueles, dando indicações claras sobre a possibilidade de não receber o navio, até porque a generalidade das graves deficiências detetadas eram impossíveis de solucionar na fase em que se encontrava a construção.

Face a todos estes problemas que levaram ao incumprimento do contrato por parte dos ENVC, as partes envolvidas – Estaleiros Navais de Viana do Castelo e Atlânticoline – acordaram por fim à relação contratual, decisão que foi homologada pelo Tribunal Arbitral e que, por isso mesmo, tem força de sentença judicial.

 

Não deixa de ser curioso que a partir da tomada de posse do Governo Regional saído das eleições regionais de 2008, deixaram de haver aditamentos duvidosos e situações menos claras e passou a vigorar, exclusivamente, o que estava contratualizado.

 

Não me querendo pronunciar sobre o processo de concessão dos ENVC que desconheço creio ser possível concluir que não foram os trabalhadores dos ENVC que destruíram a empresa. Os trabalhadores são, nas suas diferentes especialidades, dos melhores do mundo. Também não foram os casos ATLÂNTIDA e ANTICICLONE quem destruiu a empresa, embora tenham dado algum contributo. Na verdade quem destruiu os ENVC foram vários “boys” partidários, incompetentes e irresponsáveis, que, desde a nacionalização, foram sucessivamente nomeados para a administração pelos partidos no poder.